terça-feira, 26 de outubro de 2010

O copo está meio cheio ou meio vazio?

O CONFLITO ENTRE A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO À LUZ DO artigo 1.010, § 3º do Código Civil E A “BUSINESS JUDGMENT RULE”


O Novo Código Civil expandiu de forma significativa a extensão da responsabilidade dos sócios, pois sinalizou que ser “sócio” não é meramente conhecer dos negócios ou ter capital necessário para investir em determinado empreendimento. O exercício da “função” de sócio de uma sociedade, quando analisada sob a ótica das deliberações por eles tomadas, passou a ocasionar uma evidente exposição pessoal e patrimonial, uma vez que profissionalizou o status “Sócio”.

Sob esse escudo, questiona-se: os sócios respondem por atos corriqueiros de gestão quando praticados dentro dos limites do Contrato Social e com a observância da Legislação? O Contrato Social deve designar quais são as competências e a forma de agir de cada um dos sócios dentro dos limites de suas respectivas atribuições. Na supressão destas regras, os sócios, por presunção legal, terão amplos poderes de gestão, podendo livremente praticar atos pertinentes aos objetivos sociais.

Destarte, a arte do comércio é da essência do ser humano, e muito difícil é positivar uma característica tão subjetiva quanto aquela defendida no artigo 1.010, § 3º do Código Civil[1], que inovou, trazendo a possibilidade do sócio responder por perdas e danos mesmo quando praticar ato em conformidade com o Contrato Social e Legislação.

Soa incoerente, uma vez que o sócio só responderia por eventuais perdas e danos se praticasse ato ilícito em desacordo com a Legislação e o Contrato Social. Entretanto, devido ao grande número de empresas familiares, a gestão do interesse da empresa e a gestão familiar se confundem. Conflitos entre a evidente falta de participação efetiva dos sócios que legalmente constituem a empresa nas suas atividades do dia-a-dia, e as situações em que prevalece o emprego de parentes, sem ser este orientado ou acompanhado por critérios objetivos de avaliação do desempenho profissional, corroboram para a linha tênue existente entre os interesses pessoais e os negócios da sociedade.

Logo, a necessária cautela a ser adotada nos atos de gestão, a fim de evitar as proposições de responsabilidade, é a observância do artigo 1.010, § 3º, para mensurar quais os reflexos das decisões tomadas pelos sócios.

 Contrapartida, vem sendo discutida a posição adotada pela teoria da business judgment rule. A business judgment rule é um preceito criado na idéia de “provar que o sócio atuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”. De acordo com ela, há certas circunstâncias que eximem os sócios de eventual responsabilidade, ainda que a decisão tomada não tenha conduzido a resultados positivos e possa mesmo ter-se revelado gravemente danosa para os interesses da sociedade.

Esta teoria, criada pela Jurisprudência dos Estados Unidos[2], consagra a “presunção de que ao tomar uma decisão de negócios os sócios da sociedade atuaram informadamente, de boa fé e na honesta crença de que essa ação era no melhor interesse da sociedade”. Assim, o sócio que decide sobre os negócios da sociedade de boa fé cumpre o seu dever se não tem qualquer interesse na matéria da decisão; está informado à respeito da matéria, na extensão em que os outros sócios também acreditam ser apropriada segundo as circunstâncias; e racionalmente acredita que a decisão é tomada no melhor interesse da sociedade.

Quanto à responsabilidade dos sócios, é na verdade crucial saber em que medida as ações por eles levadas a cabo estão sujeitas à análise da “justiça”. A questão apresenta-se relevante porque no direito societário estão presentes dois requisitos basilares: autonomia e discricionariedade[3].  

Sirva o seguinte exemplo: sociedade limitada, formada por 5 sócios, cuja composição e distribuição de cotas do capital social é: “A” com 35%; “AB” com 10%; “AC” com 5%; “D” com 25%; e “E” com 25%, totalizando assim 100% do capital social. Sublinhe-se que “A”, “AB” e “AC” são, respectivamente, pai e filhos.

Em reunião anual para definição de Administrador, “AB” candidata-se ao cargo de administrador da sociedade. “A” e “AC” votam a favor de “AB”. De acordo com o artigo 1.076, II do Código Civil, a deliberação para designição de administrador será feita pelo voto correspondente à mais da metade do capital social. Somando-se as participações de “A”, “AB” e “AC” surge o montande de 50% do capital social, entretanto, “D” e “E” não votam a favor de “AB” para o cargo, e ambos somam, também, 50% do capital social, resultando em empate.

Com fulcro no artigo 1.010, §2º do Código Civil, no caso de empate, prevalecerá a decisão sufragada por maior número de sócios, ou seja, se houver empate quanto ao capital social, a decisão será tomada pelo maior número de sócios presentes na reunião. Assim, no caso em tela, “AB” será nomeado Administrador por maioria de votos (3 à 2), pois somam-se os votos de “A”, “AB” e “AC” contra os votos de “D” e “E”.

Diversas vezes foram marcadas reuniões para que o assunto pudesse ser melhor discutido e decidido, o que gerou uma insegurança no mercado, e consequente instabilidade na confiança na empresa, culminando na perda de clientes e fornecedores estratégicos. Estes reflexos negativos foram constatados.

Nessa hipótese, poderiam os sócios “D” e “E” responsabilizar por perdas e danos os outros sócios? A análise do panorama “ilicitude” neste caso se torna complexa, pois poderiam os sócios “A”, “AB e “AC” justificarem seus votos arrimando-se sob a ótica da business judgment rule, onde racionalmente acreditaram que a decisão tomada respeitou o melhor interesse da sociedade; ou poderiam os sócios “D” e “E” fundamentarem sua indignação nos termos do artigo 1.010, §3º, uma vez que houve a clara operação de interesse contrário ao da sociedade.

Por óbvio que o poder de dirigir a sociedade implica na liberdade decisória dos sócios. Mas ela não se apresenta irrestrita e totalmente livre. Existe uma linha muito tênue entre a exclusão da responsabilidade do sócios sob a égide da business judgment rule e a aplicação do artigo 1.010, §3º. Assim, o conflito existente entre a real caracterização dos limites das responsabilidades dos sócios remete à conhecida imagem do copo meio cheio ou meio vazio.

Thiago Nicacio Lima
Coordenador de Direito Empresarial - CJA - OAB/SP
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[1] Art. 1.010. Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão to­madas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um. (...) 3o Responde por perdas e danoso sócio que, tendo em alguma operação interesse contrário ao da sociedade, participar da delibera­ção que a aprove graças a seu voto.

[2] O leading case foi Aronson vs. Lewis, decidido em 1984: cfr. MARCUS ROTH, Unternehmerisches Ermessen und Haftung des Vorstands, München, 2001, 45 IN Manuel A. Carneiro da Frada - A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores.
[3] a) autonomia da decisão, ou seja, a certeza da decisão tomada sem interferência exterior, de forma independente; b) a discricionariedade quanto a liberdade para escolher, entre as alternativas existemtes ao caso, sob qual fundamento a sua decisão será paltada.

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